segunda-feira, 6 de abril de 2009

ROCCO E OS SEUS IRMÃOS de Luchino Visconti

ROCCO E I SUOI FRATELLI, Luchino Visconti, Itália, França, 1960
Quando em 1960, Visconti regressa às narrativas evocativas da classe operária - em detrimento da linha que virá a assumir mais formalmente na recta final da sua carreira quando se torna o retratista da decadência da aristocracia europeia e que, de certo modo, começara a assumir em obras anteriores como «Senso» ou mesmo «Noites Brancas» - emerge esta obra-prima absoluta que reintroduz na linguagem formal e estética do neo-realismo o período da Itália reconstruída. O filme surge numa época em que realizadores como Federico Fellini ou Michelangelo Antonioni superavam essa relação umbilical da cinematografia italiana do pós-guerra, baseada numa ficção absolutamente enraizada na realidade concreta do quotidiano das classes mais desprotegidas, e iniciavam, paralelamente aos vizinhos franceses da nouvelle vague, o seu percurso próprio através da experimentação estética e narrativa de todas as potencialidades dessa arte total que é o cinema.

Ambientado em Milão, no próspero vale do Pó, terra prometida para os que abandonam as terras paupérrimas do Sul e buscam a sua sorte numa grande cidade industrial, «Rocco e os seus irmãos» é uma história de diáspora marcada pelo sentido trágico e operático que emerge em toda a obra de Luchino Visconti. Em busca de encontrar o irmão mais velho, a família Parondi imigra para Milão, estabelecendo-se numa espécie de cortiço onde o Estado aloja os sem-abrigo. Vivem de pequenos biscates, como retirar neve das ruas, enquanto lentamente vão conseguindo melhorar a sua condição de vida sem que essa ascensão seja acompanhada por múltiplas vicissitudes: Rocco (Alain Delon) ingressa no exército e mais tarde, contra toda a sua natureza, torna-se num boxeur promissor; Ciro (Max Cartier) estuda à noite enquanto trabalha na indústria automóvel; Simone (Renato Salvatori) consagra-se no boxe mas numa espiral de autodestruição acaba por se tornar o elemento desagregador de todas as raízes familiares.

É precisamente na relação entre estes três (dos cinco) irmãos que o filme se centra. Primeiro, a personagem de Rocco que comporta em si o peso daquilo que Lukács considerava o herói positivo, alguém que é capaz de actuar sobre a realidade e alterá-la, comportando todo um elevado esforço de sacrifício pessoal. Por amor à família e, sobretudo, ao irmão Simone, Rocco abdica do seu grande amor, Nadia (Annie Girardot) e entrega-se ao boxe, num exercício de flagelação que faz dele a personagem mais profundamente trágica do filme. Simone representa a vítima do fascínio exercido por uma grande cidade com as suas múltiplas tentações, como dinheiro fácil e sexo. Entre ambos está uma paixão dilacerante por Nadia, uma prostituta que acaba por ser o elemento central do confronto e de toda a desgraça que se abate sobre os Parondi. Num segundo plano, está Ciro, o mais racional dos irmãos, aquele que acredita que a virtude reside no esforço do trabalho e que esse é o único caminho para a ascensão social. Ele representa a negação da bondade asceta de Rocco e só o seu pragmatismo pode expulsar o cancro familiar em que se torna Simone. É a sua frieza e determinação que representam a nova realidade familiar que urge adaptar-se à cidade e cortar amarras com um espaço e um tempo que ficaram para trás. E é a racionalidade adaptada à esperança num mundo novo que Ciro transmite, na última sequência do filme, a Luca (Rocco Vidolazi), o irmão mais novo dos Parondi.

Quase cinquenta anos depois, «Rocco e os seus irmãos» é um manifesto de humanismo exacerbado verdadeiramente intemporal. É um filme tão apaixonante que nos comove com a complexidade das suas personagens tão singelamente desesperadas, sobretudo esse triângulo composto por Rocco, Nadia e Simone. Quem esquecerá essa evocação à Carmen de Georges Bizet na sequência em que a rendição ao desespero leva Nadia a avançar para a faca empunhada por Simone? Quem esquecerá essa presença de Annie Girardot, sexualmente magnânime, friamente calculista, constantemente atormentada? Ou Alain Delon, nesse personagem de bondade extrema, tão puro e inocente, sempre com os olhos na memória da terra a que anseia voltar? Hoje e sempre, um dos filmes que me faz amar o cinema.
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texto original escrito em 1998, revisto por ocasião de duas visualizações quase sequenciais que fiz por ocasião de uma programação universitária de cinema