domingo, 24 de abril de 2011

ONE FROM THE HEART, de Francis Ford Coppola

O encontro com One From the Heart, o filme que Coppola sonhou e concebeu após Apocalypse Now, continua a ter o condão de arrebatar os sentidos daqueles que há mais de duas décadas o redescobrem e continuam a fazer dele um filme de culto. Flop total à época, a dimensão desta história de amor relativamente banal, situada numa Las Vegas construída em neons coloridos totalmente concebida em estúdio, pode, aparentemente, julgar-se como uma improvável obra-prima no percurso de Francis Ford Coppola, um dos maiores cineastas norte-americanos do último terço do século XX. O encanto e o charme de One From the Heart não provém propriamente da história, nem sequer das personagens, algo carenciadas de densidade, que a habitam. O que o torna único e mágico, e faz deste inovador e revolucionário objecto cinematográfico uma obra tão amada, é todo um conceito muito particular de estética e imaginação que, aliada à música e às canções absolutamente fabulosas de Tom Waits, arrebata os sentidos e surpreende a cada visionamento, como se de uma capacidade a si imanente se tratasse.
Numa carreira marcada por obras-primas absolutas, como O Padrinho e Apocalypse Now, One From the Heart representa na filmografia de Coppola (e até mesmo no cinema americano após a revolução da década de 70) um reencontro com a magia dos grandes clássicos da época dourada de Hollywood. Um musical integralmente concebido como projecto de dezenas de artesãos que, liderados por Coppola, recriam Las Vegas nos estúdios da Zoetrope, em Los Angeles. O início do filme é bem sintomático desse “filme artesanal”, quando por entre as dunas de areia e os corpos nus de mulheres, se ergue a cidade “imaginária” que projecta no céu, com os seus neons penetrantes, todo um mundo mágico, cantado em dueto por Waits e Crystal Gail, fazendo daqueles minutos dos mais belos de todo o filme. Depois, é deixarmo-nos levar… e encantar!
One From the Heart, Francis Ford Coppola, EUA, 1982

domingo, 15 de agosto de 2010

O ECLIPSE de Michelangelo Antonioni


Derradeiro capítulo da Trilogia da Incomunicabilidade, precedido por “A Aventura” e “A Noite”, “O Eclipse” é uma das obras-primas absolutas do cineasta italiano Michelangelo Antonioini. Ensaio-poema filmado sobre o amor, ou sobre a sua ausência, os silêncios e os vazios são omnipresenças constantes num filme que vai para além da hipotética história de amor entre uma mulher e um homem, surgindo ainda hoje como uma reflexão crítica e intensa sobre o indivíduo na sociedade moderna, tema essencial em toda a obra de Antonioni após o período neo-realista.
Entre os muitos filmes de Antonioni que seria capaz de nomear como filmes da minha vida – sobretudo os realizados pelo cineasta italiano após esta obra de 1962, por sinal, a última a preto e branco –, “O Eclipse” é, por ventura, o filme mais prodigioso de um tempo dourado da produção cinematográfica europeia. Se por um lado, o romper com determinados cânones por parte de Antonioni, Fellini ou, até mesmo, Visconti anunciavam uma ruptura do grande cinema italiano com o neo-realismo, será efectivamente muito difícil dissociar em absoluto o comprometimento social destes mestres com as grandes questões políticas, sociais e culturais que compõem o mundo que os rodeia.

Se Visconti tende a retratar a crise e decadência da aristocracia europeia e Fellini se enreda na exploração de uma concepção onírica para olhar o mundo de ontem e depois, Antonioni debruça-se num aprofundar exaustivo sobre as complexidades que apontam à insondável crise do homem moderno, num lealismo intricado com os problemas mais complexos de uma franja da sociedade que enriqueceu nos gloriosos 30 anos do pós-guerra, mas que se dissociou de causas, de valores e de sentimentos, mesmo os mais profundos e viscerais que são efectivamente os que alimentam a humanidade, como, a exemplo, o amor.

Nesta perspectiva, “O Eclipse” é talvez o mais fabuloso filme da história do cinema sobre a ausência do amor, ou sobre a incapacidade de viver o amor enquanto sentimento mobilizador e catalisador de felicidade entre seres humanos. Como acontecerá na obra posterior de Antonioni (“Deserto Vermelho”) é a personagem feminina, protagonizada pela fascinante Monica Vitti, quem encarna a personificação da tragédia do vazio e da incomunicabilidade do ser humano com as concepções existenciais do mundo novo-burguês. Em “O Eclipse”, também é Vitti quem interpreta a jovem de origem humilde, com uma mãe viciada no jogo primordial do capitalismo popular, a Bolsa, que rompe uma relação de amor de vários anos com um homem financeiramente bem sucedido. As causas da separação, que surgem sugeridas nessa opacidade sempre constante no modo como Antonioni vislumbra as relações entre as suas personagens, são o vazio, o tédio, e poder-se-iam resumir numa frase enunciadora do estado de eclipse do sentimento, na afirmação da própria negação, como o é esse lapidar exercício de termo que consiste no “gostaria de te amar ou amar-te mais”.

Arrebatando o silêncio, que surge soberbamente ampliado no “ruído” sonoro e visual de elementos estranhamente harmoniosos – como os reflexos no chão ou nas janelas ou no trabalhar de uma ventoinha –, a cena inicial poder-se-ia resumir inteligivelmente à questão que a personagem de Vitti coloca ao amante: “evita-mos dizer certas coisas; porque haveríamos de dizê-las agora?” Como se fosse demasiado tarde para superar as incapacidades a que se rendem os homens da modernidade, senhores da comunicação, mas agentes destroçados na incomunicabilidade profunda em que mergulhou a sua mais elementar humanidade. A frieza e dramaticidade como Antonioni filma a Bolsa de Roma potencia esse mesmo fenómeno de comunicabilidade inumana em que mergulhámos, como se irrompesse uma nova linguagem, composta de códigos e regras distantes do vento que faz mover as folhas das árvores ou das sensações por que batem os corações.

A relação de amor (se assim se pode designar, no seu misto de prolongamento de vazio e carne) que se segue é sintomática de um estado de tédio: uma mulher dilacerada pela incapacidade de amar e um homem esvaziado na sua profissão e imagem (Alain Delon). O jogo de sedução entre ambos roça uma infantilidade quase boçal. É feito de palavras vãs e escassas, como se evitassem reconhecer-se, e consome-se em medos e sucessivos adiamentos. Há como que uma miragem de consumação plena, numa tarde no parque, mas esta pauta-se pela distância, como a que sugere a arquitectura longilínea que impera no bairro em que a personagem de Vitti habita.

O mais desconcertante é o modo como Antonioni nos chega a levar pelo caminho de crença na redenção do par por via do amor. Tomamo-nos de um lirismo comovedor quando Vitti promete a Dellon o primeiro beijo, logo após passarem uma passadeira num cruzamento da cidade. Aí tudo acontece, ou nada; dali, vê-se o primeiro beijo entre os amantes, mas também ali se inicia uma das mais extraordinárias sequências da história do cinema, quando, simplesmente, o vazio se instala nas rotinas vulgares de um final de tarde. O local de encontro dos amantes, ele e ela que se eclipsam para não mais os voltarmos a encontrar.

L´Eclipse, Michelangelo Antonioni, Itália/França, 1962

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

PLAYTIME de Jacques Tati

Há filmes que são uma constante aventura. Proporcionam abordagens sempre diferentes e compulsivamente estimulantes, para além de leituras cumulativas sobre a realidade que envolveu e envolve transversalmente várias gerações. Apesar de mais de quarenta anos decorridos sobre a obra-prima de Jacques Tati, “Playtime” - que em Portugal se intitulou “Vida Moderna”- é um desses objectos raros de aventura permanente no cinema, uma obra sempre aberta à descoberta e a novas leituras proporcionadas pelo correr do tempo.

Há data da sua estreia, em finais dos anos 60 do século passado, “Playtime” foi acusado de ser um filme sem estrutura. Tati, que viria a ser trucidado pelo arrojo desta sua obra, recusou a ideia, lamentando que, por ter abdicado das regras da narrativa linear das grandes histórias, o tornassem tão incompreendido. De facto, ao ter optado por fazer um filme em que a entrada do espectador não comprometesse o acompanhar da acção, Tati apostou numa leitura de liberdade total, tanto para a criação artística como para o público. Essa estruturação quase aleatória, tornaram “Playtime” numa obra de ampla liberdade, em que as ameaças e excessos da modernidade se revelam numa sucessão de gags inesquecíveis – seja pela aparente sofisticação dos costumes, seja pelos comportamentos maquinais da vida humana, seja pelos arrojos estéticos de uma arquitectura fria e padronizada.

Compreender a abordagem que “Playtime” fazia da modernidade há quarenta anos atrás poderia não ser fácil. Quando vemos, hoje, a obra-prima de Titi reconhecemos cada vez mais a nossa contemporaneidade. Nesse reconhecimento vemos o mundo da globalização onde, entre tantos aspectos, o inglês se tornou uma língua franca e passou a excluir quem não o entende; reconhecemos que a arquitectura das cidades caminhou, como eventuais diferenças, a ser cada vez mais padronizada; reconhecemos que as nossas rotinas urbanas (entre aeroportos, paragens de autocarros ou saídas do emprego para o carro) nos transformaram em quase autómatos, como se cada tempo das nossas vidas se guiasse em piloto automático; reconhecemos as filas intermináveis de automóveis e as rotundas transformadas num imenso e incessante carrossel. São aspectos da vida moderna projectada pela visão fina de Tati que, engenhosamente, nos coloca a nu perante a comédia do mundo em que vivemos.

Aquela Paris, em que a cidade histórica de Montmatre ou da Torre Eiffel apenas se projectam como silhuetas dúbias nas portas de vidro dos edifícios modernos, é uma cidade igual a tantas outras. Não falta o aeroporto frio e espaçoso, onde maquinalmente os intérpretes da realidade acompanham linearmente o desenho do espaço aberto ao corrupio das gentes que embarcam e desembarcam. Há o voo low-coast que traz uma excursão de americanas surpreendidas por Paris ter tanto trânsito, ou pela cidade ser igual a tantas outras por onde já passaram, ou a forma desumanizada com que se aborda o turismo de massas.
Depois, há o Senhor Hulot (o alter ego de Tati), perdido na cidade de edifícios alinhados em blocos imensos de vidro e betão. Há o seu olhar atónito ao reparar que o encerraram numa sala de espera que é uma gaiola de vidro, com vista para a rua que parece simultaneamente próxima e distante. Há o seu desconcerto ao percorrer os caminhos do homem com quem deveria falar por entre um enorme open-space de pequenos gabinetes isolados. Há o desnorte pelos reflexos das pessoas nos vidros conseguirem confundir a própria realidade do espaço. E, sucedem-se os equívocos numa moderna feira onde se expõem os últimos gritos da vida moderna, como a vassoura de pilhas com dois luminosos faróis incorporados ou as portas que fecham silenciosamente por mais violento que seja o acto de fechar.

Nada parece, de facto, fechar-se com ruído nesta vida moderna. Nem a vida privada que, com elegância, se projecta na rua através de janelas que funcionam como telas em que cada lar oferece histórias paralelas, mas incomunicantes. Nem as regras da diferenciação de classes, por mais que existam como demonstra o hilariante gag passado no elegante restaurante e night-club onde, supostamente, os operários deveriam estar escondidos da distinta clientela e a porta só se deveria abrir a quem demonstrasse o status indicado. Mas é aqui, nesse momento, que os silêncios e as regras maquinais da vida moderna se soltam e, entre o caos e a desordem que progressivamente se instalam, se esbatem os cânones do progresso moderno. Até ao amanhecer, os clientes do sumptuoso espaço dançam, cantam, bebem e providenciam a humanização da vida. Depois, é tempo da cidade regressar ao seu buliço e à sua regular vida moderna, ao compasso de uma dança de carrossel numa concorrida rotunda da cidade.

Enuncio aqui apenas alguns traços desta riquíssima experiência que é “Playtime”, e provavelmente são apenas as mais óbvias. Este grandioso filme desse génio que foi Jacques Tati é sempre uma hilariante experiência de aventura, um filme que jamais cansa descobrir e, pelo que conta a experiência, a sua perspectiva visionária não o deixa datar-se. Ontem, como hoje e, talvez, amanhã, “Playtime” é um daqueles momentos únicos em que a realidade se recria para nos permitir compreender melhor a nossa contemporaneidade.
PLAY TIME (VIDA MODERNA), Jacques Tati; França, 1967

domingo, 8 de novembro de 2009

ROMA CIDADE ABERTA de Roberto Rosselini


Em quase todos os manuais de cinema, aponta-se “Roma Cidade Aberta” como o filme pioneiro do neo-realismo. Realizado por Roberto Rosselini em 1945, nos escombros da devastação da Segunda Guerra Mundial, “Roma Cidade Aberta” é um filme tão desconcertadamente imperfeito como a vida. Talvez por isso, a sua marca é tão forte na memória de quem tem, ainda hoje, o prazer de o ver e rever.

Bergman disse um dia que nos filmes de Rosselini “ninguém parecia um actor e ninguém falava como um actor. Havia escuridão e sombras, e às vezes não se ouvia, às vezes nem sequer se via. Mas a vida é assim… nem sempre vemos e ouvimos, mas sabemos, quase para além do que é inteligível, que qualquer coisa está a acontecer. É como se tivessem tirado as paredes das casas e das salas, e pudéssemos ver dentro delas. Mais ainda. É como se estivéssemos ali, envolvidos nos acontecimentos, a chorar e a sangrar por eles.” Em “Roma Cidade Aberta”, verifica-se tudo isto, como se o cinema descesse à rua e num registo tão naturalmente documental aquelas personagens de ficção se tornassem tão profundamente reais como qualquer um de nós, naquelas circunstâncias. O truque estaria, citando o próprio realizador, em “seguir um punhado de ideias básicas e construí-las durante o processo de trabalho, de modo a que as cenas surjam da inspiração directa da realidade”.

Essa inspiração directa da realidade, compreende-se em “Roma Cidade Aberta” como um exercício de busca pela verdade, pelos factos e somente os factos, e pelo drama das suas personagens perante essa realidade dos factos que se assumem na mais estrita verdade. Não há espaço para heróis, apesar da força de duas personagens centrais neste filme: o padre Don Pietro (Aldo Fabrizi) e Pina (Anna Magnani). Ambos, protagonizam essa exacerbação da verdade pela carga simbólica que cada uma dessas personagens acarreta. Ele, um símbolo da coragem e da perseverança na luta contra os ocupantes nazis; ela, a personificação do próprio povo de Roma, subjugado e sofrido pelos efeitos da repressão e da guerra. O sacrifício de ambos, em duas das sequências mais extraordinárias da história do cinema, vinca o poder da imagem em movimento na representação mais absoluta da realidade.
ROMA CITTÀ APERTA, Roberto Rosselini; Itália, 1945
NOTA: Parte deste pequeno texto data de 1992, tendo sido retiradas considerações mais genéricas sobre o neo-realismo (que, a meu ver, são infantilmente politizadas) e introduzidos elementos directamente relacionado com o filme e o realizador, como a citação de Bergman, encontrada no livro de Eduardo Geada, “Os Mundos do Cinema”. No texto original, a última frase do segundo parágrafo - se incluirmos o lead - referia o "método" de Rosselini, o que considero um pouco ambíguo, não porque se negue a existência de " método" mas porque a palavra implica uma cientificidade e disciplina que não se coadunam com o filme e com parte da obra do realizador italiano; por isso mesmo, substitui "método" por "truque", até porque o cinema, mesmo o mais verdadeiro, vive sempre do truque, como a magia e o ilusionismo.

sábado, 18 de julho de 2009

VERTIGO de Alfred Hitchcock

VERTIGO - A MULHER QUE VIVEU DUAS VEZES, Alfred Hitchcock, EUA, 1958
Há quem diga que Hitchcock só filmou histórias de amor. Talvez isso não corresponda inteiramente à verdade mas, se houve histórias de amor que Hitchcock filmou, “Vertigo” foi, com toda a certeza, uma delas. E, de entre todas as histórias de amor que o cinema contou, “Vertigo” é talvez a mais hipnótica, a mais pungente e a mais obsessiva de todas.
Numa primeira impressão, “Vertigo” é um thriller que, na aparência, se resume à história de um polícia (James Stewart) com acrofobia que é contratado por um velho amigo para vigiar a mulher (Kim Novak) com tendências suicidas. Ela vive numa profunda instabilidade emocional relacionada, eventualmente, com a crença de que é outra pessoa, alguém que morrera em circunstâncias trágicas muito tempo antes. Mas depois, este polícia fragilizado pelo medo das alturas apaixona-se, envolve-se profundamente com a mulher que deveria vigiar e que anseia desesperadamente salvar. E, é a incapacidade em lidar com o maior dos seus medos que faz com que ele a perca. Até que, surge a oportunidade de recuperar o amor perdido e, num exercício da mais profunda monomania emocional, “reconstruir” a mulher que se amou, até ao desenlace incontornável, em que a perda se torna definitiva.

A primeira vez que vi “Vertigo” foi na televisão. À época, já tinha visto alguns filmes de Brian de Palma e de Martin Scorsese pelo que o impacto de algumas técnicas e planos que via agora Hitchcock usar quase me passaram despercebidas. Mesmo todo o enredo me parecera padecer numa espécie de deja-vu de pequeno ecrã. Mas, “Vertigo” ficou sempre à mão porque o vhs permitia esse luxo. Depressa me viciei no filme e compreendi que andou meio mundo a imitá-lo. A cena da escadaria em que a vertigem era encenada com uma eficácia notável, o jogo de luzes e sombras que transmitiam os laivos de sobrenatural que me provocaram regulares arrepios na espinha e aquela imagem tão sedutora (mas a rasar quase o ameaçador porque tudo se revela) em que Kim Novak aparece numa nebulosa de néon são-me ainda hoje absolutamente inesquecíveis. E ainda há a música de Bernard Herrmann e a sequência do título de Saul Bass que são do mais exemplar que o cinema ofereceu às plateias.
Há uns anos atrás tive o privilégio de ver “Vertigo” em sala de cinema, no Nimas, em cópia nova. Foi uma experiência inolvidável puder sentir todas aquelas cenas que me marcaram num ecrã grande e no ambiente de cinema. Por essa altura li bastante sobre o filme e até fiquei a saber que o efeito da vertigem que Hitchcock criara - e que Chabrol (“A Mulher Infiel”), Arthur Penn (“Alice`s Restaurant”), De Palma (“Body Double”) e outros imitaram - resultava da combinação de dois movimentos simultâneos de câmara, através das lentes que vão ora para a frente ora para trás, dando a noção do achatamento do espaço da tela. Recordo também João Benard da Costa referir que se havia cena no cinema que sempre o comovia era aquela do néon; e como o compreendia.
Há muitos filmes de Alfred Hitchcock que me apaixonam, como "Spellbound", "Janela Indiscreta", "Psico" ou "Marnie". O velho mestre britânico foi um desses génios raros que, com tantas obras, fez do cinema uma arte com maiúscula. Mas “Vertigo”, essa história de amor repleta de fantasmas, é a Obra. Não será heresia que muitos cinéfilos do mundo o elejam como o maior de todos os filmes do cinema americano.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

ROCCO E OS SEUS IRMÃOS de Luchino Visconti

ROCCO E I SUOI FRATELLI, Luchino Visconti, Itália, França, 1960
Quando em 1960, Visconti regressa às narrativas evocativas da classe operária - em detrimento da linha que virá a assumir mais formalmente na recta final da sua carreira quando se torna o retratista da decadência da aristocracia europeia e que, de certo modo, começara a assumir em obras anteriores como «Senso» ou mesmo «Noites Brancas» - emerge esta obra-prima absoluta que reintroduz na linguagem formal e estética do neo-realismo o período da Itália reconstruída. O filme surge numa época em que realizadores como Federico Fellini ou Michelangelo Antonioni superavam essa relação umbilical da cinematografia italiana do pós-guerra, baseada numa ficção absolutamente enraizada na realidade concreta do quotidiano das classes mais desprotegidas, e iniciavam, paralelamente aos vizinhos franceses da nouvelle vague, o seu percurso próprio através da experimentação estética e narrativa de todas as potencialidades dessa arte total que é o cinema.

Ambientado em Milão, no próspero vale do Pó, terra prometida para os que abandonam as terras paupérrimas do Sul e buscam a sua sorte numa grande cidade industrial, «Rocco e os seus irmãos» é uma história de diáspora marcada pelo sentido trágico e operático que emerge em toda a obra de Luchino Visconti. Em busca de encontrar o irmão mais velho, a família Parondi imigra para Milão, estabelecendo-se numa espécie de cortiço onde o Estado aloja os sem-abrigo. Vivem de pequenos biscates, como retirar neve das ruas, enquanto lentamente vão conseguindo melhorar a sua condição de vida sem que essa ascensão seja acompanhada por múltiplas vicissitudes: Rocco (Alain Delon) ingressa no exército e mais tarde, contra toda a sua natureza, torna-se num boxeur promissor; Ciro (Max Cartier) estuda à noite enquanto trabalha na indústria automóvel; Simone (Renato Salvatori) consagra-se no boxe mas numa espiral de autodestruição acaba por se tornar o elemento desagregador de todas as raízes familiares.

É precisamente na relação entre estes três (dos cinco) irmãos que o filme se centra. Primeiro, a personagem de Rocco que comporta em si o peso daquilo que Lukács considerava o herói positivo, alguém que é capaz de actuar sobre a realidade e alterá-la, comportando todo um elevado esforço de sacrifício pessoal. Por amor à família e, sobretudo, ao irmão Simone, Rocco abdica do seu grande amor, Nadia (Annie Girardot) e entrega-se ao boxe, num exercício de flagelação que faz dele a personagem mais profundamente trágica do filme. Simone representa a vítima do fascínio exercido por uma grande cidade com as suas múltiplas tentações, como dinheiro fácil e sexo. Entre ambos está uma paixão dilacerante por Nadia, uma prostituta que acaba por ser o elemento central do confronto e de toda a desgraça que se abate sobre os Parondi. Num segundo plano, está Ciro, o mais racional dos irmãos, aquele que acredita que a virtude reside no esforço do trabalho e que esse é o único caminho para a ascensão social. Ele representa a negação da bondade asceta de Rocco e só o seu pragmatismo pode expulsar o cancro familiar em que se torna Simone. É a sua frieza e determinação que representam a nova realidade familiar que urge adaptar-se à cidade e cortar amarras com um espaço e um tempo que ficaram para trás. E é a racionalidade adaptada à esperança num mundo novo que Ciro transmite, na última sequência do filme, a Luca (Rocco Vidolazi), o irmão mais novo dos Parondi.

Quase cinquenta anos depois, «Rocco e os seus irmãos» é um manifesto de humanismo exacerbado verdadeiramente intemporal. É um filme tão apaixonante que nos comove com a complexidade das suas personagens tão singelamente desesperadas, sobretudo esse triângulo composto por Rocco, Nadia e Simone. Quem esquecerá essa evocação à Carmen de Georges Bizet na sequência em que a rendição ao desespero leva Nadia a avançar para a faca empunhada por Simone? Quem esquecerá essa presença de Annie Girardot, sexualmente magnânime, friamente calculista, constantemente atormentada? Ou Alain Delon, nesse personagem de bondade extrema, tão puro e inocente, sempre com os olhos na memória da terra a que anseia voltar? Hoje e sempre, um dos filmes que me faz amar o cinema.
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texto original escrito em 1998, revisto por ocasião de duas visualizações quase sequenciais que fiz por ocasião de uma programação universitária de cinema