Há filmes que são uma constante aventura. Proporcionam abordagens sempre diferentes e compulsivamente estimulantes, para além de leituras cumulativas sobre a realidade que envolveu e envolve transversalmente várias gerações. Apesar de mais de quarenta anos decorridos sobre a obra-prima de Jacques Tati, “Playtime” - que em Portugal se intitulou “Vida Moderna”- é um desses objectos raros de aventura permanente no cinema, uma obra sempre aberta à descoberta e a novas leituras proporcionadas pelo correr do tempo.
Há data da sua estreia, em finais dos anos 60 do século passado, “Playtime” foi acusado de ser um filme sem estrutura. Tati, que viria a ser trucidado pelo arrojo desta sua obra, recusou a ideia, lamentando que, por ter abdicado das regras da narrativa linear das grandes histórias, o tornassem tão incompreendido. De facto, ao ter optado por fazer um filme em que a entrada do espectador não comprometesse o acompanhar da acção, Tati apostou numa leitura de liberdade total, tanto para a criação artística como para o público. Essa estruturação quase aleatória, tornaram “Playtime” numa obra de ampla liberdade, em que as ameaças e excessos da modernidade se revelam numa sucessão de gags inesquecíveis – seja pela aparente sofisticação dos costumes, seja pelos comportamentos maquinais da vida humana, seja pelos arrojos estéticos de uma arquitectura fria e padronizada.
Compreender a abordagem que “Playtime” fazia da modernidade há quarenta anos atrás poderia não ser fácil. Quando vemos, hoje, a obra-prima de Titi reconhecemos cada vez mais a nossa contemporaneidade. Nesse reconhecimento vemos o mundo da globalização onde, entre tantos aspectos, o inglês se tornou uma língua franca e passou a excluir quem não o entende; reconhecemos que a arquitectura das cidades caminhou, como eventuais diferenças, a ser cada vez mais padronizada; reconhecemos que as nossas rotinas urbanas (entre aeroportos, paragens de autocarros ou saídas do emprego para o carro) nos transformaram em quase autómatos, como se cada tempo das nossas vidas se guiasse em piloto automático; reconhecemos as filas intermináveis de automóveis e as rotundas transformadas num imenso e incessante carrossel. São aspectos da vida moderna projectada pela visão fina de Tati que, engenhosamente, nos coloca a nu perante a comédia do mundo em que vivemos.
Aquela Paris, em que a cidade histórica de Montmatre ou da Torre Eiffel apenas se projectam como silhuetas dúbias nas portas de vidro dos edifícios modernos, é uma cidade igual a tantas outras. Não falta o aeroporto frio e espaçoso, onde maquinalmente os intérpretes da realidade acompanham linearmente o desenho do espaço aberto ao corrupio das gentes que embarcam e desembarcam. Há o voo low-coast que traz uma excursão de americanas surpreendidas por Paris ter tanto trânsito, ou pela cidade ser igual a tantas outras por onde já passaram, ou a forma desumanizada com que se aborda o turismo de massas.
Depois, há o Senhor Hulot (o alter ego de Tati), perdido na cidade de edifícios alinhados em blocos imensos de vidro e betão. Há o seu olhar atónito ao reparar que o encerraram numa sala de espera que é uma gaiola de vidro, com vista para a rua que parece simultaneamente próxima e distante. Há o seu desconcerto ao percorrer os caminhos do homem com quem deveria falar por entre um enorme open-space de pequenos gabinetes isolados. Há o desnorte pelos reflexos das pessoas nos vidros conseguirem confundir a própria realidade do espaço. E, sucedem-se os equívocos numa moderna feira onde se expõem os últimos gritos da vida moderna, como a vassoura de pilhas com dois luminosos faróis incorporados ou as portas que fecham silenciosamente por mais violento que seja o acto de fechar.
Nada parece, de facto, fechar-se com ruído nesta vida moderna. Nem a vida privada que, com elegância, se projecta na rua através de janelas que funcionam como telas em que cada lar oferece histórias paralelas, mas incomunicantes. Nem as regras da diferenciação de classes, por mais que existam como demonstra o hilariante gag passado no elegante restaurante e night-club onde, supostamente, os operários deveriam estar escondidos da distinta clientela e a porta só se deveria abrir a quem demonstrasse o status indicado. Mas é aqui, nesse momento, que os silêncios e as regras maquinais da vida moderna se soltam e, entre o caos e a desordem que progressivamente se instalam, se esbatem os cânones do progresso moderno. Até ao amanhecer, os clientes do sumptuoso espaço dançam, cantam, bebem e providenciam a humanização da vida. Depois, é tempo da cidade regressar ao seu buliço e à sua regular vida moderna, ao compasso de uma dança de carrossel numa concorrida rotunda da cidade.
Enuncio aqui apenas alguns traços desta riquíssima experiência que é “Playtime”, e provavelmente são apenas as mais óbvias. Este grandioso filme desse génio que foi Jacques Tati é sempre uma hilariante experiência de aventura, um filme que jamais cansa descobrir e, pelo que conta a experiência, a sua perspectiva visionária não o deixa datar-se. Ontem, como hoje e, talvez, amanhã, “Playtime” é um daqueles momentos únicos em que a realidade se recria para nos permitir compreender melhor a nossa contemporaneidade. PLAY TIME (VIDA MODERNA), Jacques Tati; França, 1967
Há data da sua estreia, em finais dos anos 60 do século passado, “Playtime” foi acusado de ser um filme sem estrutura. Tati, que viria a ser trucidado pelo arrojo desta sua obra, recusou a ideia, lamentando que, por ter abdicado das regras da narrativa linear das grandes histórias, o tornassem tão incompreendido. De facto, ao ter optado por fazer um filme em que a entrada do espectador não comprometesse o acompanhar da acção, Tati apostou numa leitura de liberdade total, tanto para a criação artística como para o público. Essa estruturação quase aleatória, tornaram “Playtime” numa obra de ampla liberdade, em que as ameaças e excessos da modernidade se revelam numa sucessão de gags inesquecíveis – seja pela aparente sofisticação dos costumes, seja pelos comportamentos maquinais da vida humana, seja pelos arrojos estéticos de uma arquitectura fria e padronizada.
Compreender a abordagem que “Playtime” fazia da modernidade há quarenta anos atrás poderia não ser fácil. Quando vemos, hoje, a obra-prima de Titi reconhecemos cada vez mais a nossa contemporaneidade. Nesse reconhecimento vemos o mundo da globalização onde, entre tantos aspectos, o inglês se tornou uma língua franca e passou a excluir quem não o entende; reconhecemos que a arquitectura das cidades caminhou, como eventuais diferenças, a ser cada vez mais padronizada; reconhecemos que as nossas rotinas urbanas (entre aeroportos, paragens de autocarros ou saídas do emprego para o carro) nos transformaram em quase autómatos, como se cada tempo das nossas vidas se guiasse em piloto automático; reconhecemos as filas intermináveis de automóveis e as rotundas transformadas num imenso e incessante carrossel. São aspectos da vida moderna projectada pela visão fina de Tati que, engenhosamente, nos coloca a nu perante a comédia do mundo em que vivemos.
Aquela Paris, em que a cidade histórica de Montmatre ou da Torre Eiffel apenas se projectam como silhuetas dúbias nas portas de vidro dos edifícios modernos, é uma cidade igual a tantas outras. Não falta o aeroporto frio e espaçoso, onde maquinalmente os intérpretes da realidade acompanham linearmente o desenho do espaço aberto ao corrupio das gentes que embarcam e desembarcam. Há o voo low-coast que traz uma excursão de americanas surpreendidas por Paris ter tanto trânsito, ou pela cidade ser igual a tantas outras por onde já passaram, ou a forma desumanizada com que se aborda o turismo de massas.
Depois, há o Senhor Hulot (o alter ego de Tati), perdido na cidade de edifícios alinhados em blocos imensos de vidro e betão. Há o seu olhar atónito ao reparar que o encerraram numa sala de espera que é uma gaiola de vidro, com vista para a rua que parece simultaneamente próxima e distante. Há o seu desconcerto ao percorrer os caminhos do homem com quem deveria falar por entre um enorme open-space de pequenos gabinetes isolados. Há o desnorte pelos reflexos das pessoas nos vidros conseguirem confundir a própria realidade do espaço. E, sucedem-se os equívocos numa moderna feira onde se expõem os últimos gritos da vida moderna, como a vassoura de pilhas com dois luminosos faróis incorporados ou as portas que fecham silenciosamente por mais violento que seja o acto de fechar.
Nada parece, de facto, fechar-se com ruído nesta vida moderna. Nem a vida privada que, com elegância, se projecta na rua através de janelas que funcionam como telas em que cada lar oferece histórias paralelas, mas incomunicantes. Nem as regras da diferenciação de classes, por mais que existam como demonstra o hilariante gag passado no elegante restaurante e night-club onde, supostamente, os operários deveriam estar escondidos da distinta clientela e a porta só se deveria abrir a quem demonstrasse o status indicado. Mas é aqui, nesse momento, que os silêncios e as regras maquinais da vida moderna se soltam e, entre o caos e a desordem que progressivamente se instalam, se esbatem os cânones do progresso moderno. Até ao amanhecer, os clientes do sumptuoso espaço dançam, cantam, bebem e providenciam a humanização da vida. Depois, é tempo da cidade regressar ao seu buliço e à sua regular vida moderna, ao compasso de uma dança de carrossel numa concorrida rotunda da cidade.
Enuncio aqui apenas alguns traços desta riquíssima experiência que é “Playtime”, e provavelmente são apenas as mais óbvias. Este grandioso filme desse génio que foi Jacques Tati é sempre uma hilariante experiência de aventura, um filme que jamais cansa descobrir e, pelo que conta a experiência, a sua perspectiva visionária não o deixa datar-se. Ontem, como hoje e, talvez, amanhã, “Playtime” é um daqueles momentos únicos em que a realidade se recria para nos permitir compreender melhor a nossa contemporaneidade. PLAY TIME (VIDA MODERNA), Jacques Tati; França, 1967