domingo, 15 de agosto de 2010

O ECLIPSE de Michelangelo Antonioni


Derradeiro capítulo da Trilogia da Incomunicabilidade, precedido por “A Aventura” e “A Noite”, “O Eclipse” é uma das obras-primas absolutas do cineasta italiano Michelangelo Antonioini. Ensaio-poema filmado sobre o amor, ou sobre a sua ausência, os silêncios e os vazios são omnipresenças constantes num filme que vai para além da hipotética história de amor entre uma mulher e um homem, surgindo ainda hoje como uma reflexão crítica e intensa sobre o indivíduo na sociedade moderna, tema essencial em toda a obra de Antonioni após o período neo-realista.
Entre os muitos filmes de Antonioni que seria capaz de nomear como filmes da minha vida – sobretudo os realizados pelo cineasta italiano após esta obra de 1962, por sinal, a última a preto e branco –, “O Eclipse” é, por ventura, o filme mais prodigioso de um tempo dourado da produção cinematográfica europeia. Se por um lado, o romper com determinados cânones por parte de Antonioni, Fellini ou, até mesmo, Visconti anunciavam uma ruptura do grande cinema italiano com o neo-realismo, será efectivamente muito difícil dissociar em absoluto o comprometimento social destes mestres com as grandes questões políticas, sociais e culturais que compõem o mundo que os rodeia.

Se Visconti tende a retratar a crise e decadência da aristocracia europeia e Fellini se enreda na exploração de uma concepção onírica para olhar o mundo de ontem e depois, Antonioni debruça-se num aprofundar exaustivo sobre as complexidades que apontam à insondável crise do homem moderno, num lealismo intricado com os problemas mais complexos de uma franja da sociedade que enriqueceu nos gloriosos 30 anos do pós-guerra, mas que se dissociou de causas, de valores e de sentimentos, mesmo os mais profundos e viscerais que são efectivamente os que alimentam a humanidade, como, a exemplo, o amor.

Nesta perspectiva, “O Eclipse” é talvez o mais fabuloso filme da história do cinema sobre a ausência do amor, ou sobre a incapacidade de viver o amor enquanto sentimento mobilizador e catalisador de felicidade entre seres humanos. Como acontecerá na obra posterior de Antonioni (“Deserto Vermelho”) é a personagem feminina, protagonizada pela fascinante Monica Vitti, quem encarna a personificação da tragédia do vazio e da incomunicabilidade do ser humano com as concepções existenciais do mundo novo-burguês. Em “O Eclipse”, também é Vitti quem interpreta a jovem de origem humilde, com uma mãe viciada no jogo primordial do capitalismo popular, a Bolsa, que rompe uma relação de amor de vários anos com um homem financeiramente bem sucedido. As causas da separação, que surgem sugeridas nessa opacidade sempre constante no modo como Antonioni vislumbra as relações entre as suas personagens, são o vazio, o tédio, e poder-se-iam resumir numa frase enunciadora do estado de eclipse do sentimento, na afirmação da própria negação, como o é esse lapidar exercício de termo que consiste no “gostaria de te amar ou amar-te mais”.

Arrebatando o silêncio, que surge soberbamente ampliado no “ruído” sonoro e visual de elementos estranhamente harmoniosos – como os reflexos no chão ou nas janelas ou no trabalhar de uma ventoinha –, a cena inicial poder-se-ia resumir inteligivelmente à questão que a personagem de Vitti coloca ao amante: “evita-mos dizer certas coisas; porque haveríamos de dizê-las agora?” Como se fosse demasiado tarde para superar as incapacidades a que se rendem os homens da modernidade, senhores da comunicação, mas agentes destroçados na incomunicabilidade profunda em que mergulhou a sua mais elementar humanidade. A frieza e dramaticidade como Antonioni filma a Bolsa de Roma potencia esse mesmo fenómeno de comunicabilidade inumana em que mergulhámos, como se irrompesse uma nova linguagem, composta de códigos e regras distantes do vento que faz mover as folhas das árvores ou das sensações por que batem os corações.

A relação de amor (se assim se pode designar, no seu misto de prolongamento de vazio e carne) que se segue é sintomática de um estado de tédio: uma mulher dilacerada pela incapacidade de amar e um homem esvaziado na sua profissão e imagem (Alain Delon). O jogo de sedução entre ambos roça uma infantilidade quase boçal. É feito de palavras vãs e escassas, como se evitassem reconhecer-se, e consome-se em medos e sucessivos adiamentos. Há como que uma miragem de consumação plena, numa tarde no parque, mas esta pauta-se pela distância, como a que sugere a arquitectura longilínea que impera no bairro em que a personagem de Vitti habita.

O mais desconcertante é o modo como Antonioni nos chega a levar pelo caminho de crença na redenção do par por via do amor. Tomamo-nos de um lirismo comovedor quando Vitti promete a Dellon o primeiro beijo, logo após passarem uma passadeira num cruzamento da cidade. Aí tudo acontece, ou nada; dali, vê-se o primeiro beijo entre os amantes, mas também ali se inicia uma das mais extraordinárias sequências da história do cinema, quando, simplesmente, o vazio se instala nas rotinas vulgares de um final de tarde. O local de encontro dos amantes, ele e ela que se eclipsam para não mais os voltarmos a encontrar.

L´Eclipse, Michelangelo Antonioni, Itália/França, 1962

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